segunda-feira, 26 de agosto de 2013

NÃO É VERDADE QUE A HISTÓRIA TENHA DE SEPARAR RUSSOS E POLONESES



Não é verdade que a história tenha de separar russos e poloneses. Assim dizem aqueles que se opõem à reconciliação e os que querem que sejamos sempre inimigos. Os sistemas totalitários construíram seus impérios com base na hostilidade. Mudavam os inimigos, mas os objetivos da luta não alteraram: edificaram-se sistemas conducentes ao poder absoluto – o totalitarismo. Não importa qual a base em que este tipo de sistemas se alicerçava: em ideologias precárias, filosofias utópicas ou na religião. Há uma única coisa que permaneceu sempre inalterável: para tais sistemas não existia o conceito de individualidade.


Nem todos os habitantes de Burachikha ouviram falar de Solyuga, que é uma povoação de lenhadores fundada nos anos de 1920. No início dos anos 30, durante o Holodomor, para lá eram deportados os ucranianos. Eles eram desembarcados no meio da taiga, a floresta siberiana, e cada família recebia 1 serra, 2 machados, 2 pães, um punhado de sal e fósforos. Não havia barracões. Poucos sobreviveram.

Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, os barracões dos PRIMEIROS deportados, ou seja, os “barracões dos poloneses”, foram desmontados. Tudo o que lá existia, todas as vigas e tábuas, foi transportado vários quilômetros para dentro da floresta, onde foi construída uma povoação para lenhadores. Os novos trabalhadores já não eram pessoas deportadas, mas russos normais. Eles tinham casas sólidas e confortáveis.

Vera Dubenko, a nossa anfitriã, era precisamente dessa povoação. Ela contou com agrado histórias da vida em Solyuga, sobre uma infância maravilhosa, farta e feliz. Ela não se recorda dos deportados poloneses porque nasceu alguns anos depois da sua partida, mas ela se recordou que em tempos ainda havia vestígios de campas. As memórias de infância também retiveram um polonês. Ela, sendo criança, não fazia ideia como ele terá aí aparecido. Só soube quando passaram muitos anos. Vera recorda com emoção:

“Ele era um deportado. Tinha lá enterrado a esposa e não queria abandonar a sua campa. Talvez nem tivesse para onde regressar. Na povoação ele tratava dos cavalos. Ele gostava de crianças e nós gostávamos dele. Ele brincava connosco e tinha sempre doces para nós.”

A ferrovia que levava até Solyuga já foi desmontada há muito tempo, as neves da taiga derreteram e todo o terreno se transformou num pântano intransponível. Ele é tanto mais difícil de atravessar com as estradas protegidas, além dos pântanos traiçoeiros, por animais selvagens: alces, alcateias de lobos e ursos. Para um “turista vulgar” sozinho, uma travessia destas seria um verdadeiro suicídio. Estas paragens só são frequentadas por caçadores. A boa notícia era que um deles estava sentado à mesa ao meu lado. Slava pediu que não citasse o seu sobrenome. Ele também tinha um veículo que nos podia levar até Solyuga – um Mercedes Classe G modificado.

Não sei se alguém pagou a Slava pelo seu tempo e pela sua ajuda. A mim não me deixaram pagar nem a gasolina. Foi assim que partimos em busca de locais já esquecidos por todos.

A cama

A estrada de Burachikha para Solyuga era horrível. Nem era uma estrada propriamente dita, era uma luta do condutor contra a natureza. Para percorrer dezoito quilômetros demoramos duas horas e meia.

O carro parou de repente. “É aqui”, disse Slava. Saímos do carro, ele acendeu um cigarro e sem mais palavras indicou-me com a mão uma colina a 50 metros de nós.

Eu percorria a pequena colina – o local onde viveram e morreram as PRIMEIRAS vítimas polonesas da deportação. Tropecei em algo. No meio de uma floresta virgem havia um pedaço de ferro a sair da terra. Eu percebi que tínhamos encontrado o local. Alguns minutos depois eu vi no meio da erva destroços de uma cama de ferro.

"Onde poderiam estar as campas?", perguntei a Slava. Ele acenou com a cabeça para a encosta virada para o bosque. Sem dizer mais nada, nós começamos a caminhar nessa direção. Tudo estava como contou Fela, a mãe de Kazio, antes de morrer. Duzentos metros depois, nós encontramos os primeiros montinhos que não eram naturais: um, dois, cinco… Num deles está a criança de três anos que eu procurava: Kazio.

Eu trouxe da Polônia uma placa evocativa com o seu nome e sobrenome e apenas uma frase: “A Memória é mais forte que a Morte”. As inscrições estão em duas línguas, em polonês e em russo.

Estávamos a 08 de junho de 2013, 72 anos e 5 dias depois da morte de Kazio e 30 anos depois da morte da sua mãe. Foi Slava quem espetou a placa na terra. Porque foi ele a fazê-lo? Não sei, ele assim o quis. Na taiga a placa se vê como um objeto estranho: numa encosta soalheira ela reflete a luz como um espelho. Os nervos, as emoções, o sentimento e o cansaço, tudo isso deve ter transformado um pedaço de estanho a brilhar no meio da floresta em algo de metafísico. Num sorriso de criança? Numa mão estendida pelos poloneses, que aqui repousam, aos seus compatriotas 70 anos depois? Num “grito mudo” de felicidade daqueles que nós recordamos? Para cada um de nós isso seria algo diferente. Mas para cada um de nós isso era “algo”.

Slava entrou no carro e atravessou sozinho a ponte ferroviária de madeira meio-desmoronada. “Se eu cair, haverá menos vítimas”, disse ele num tom completamente sério.

Depois, nós avançamos de carro um pouco mais e entramos na povoação construída com as tábuas dos barracões dos deportados, o local da infância feliz de Vera.

Passeamos um pouco pelas velhas casas em decadência. Então deparamos com outra surpresa: mais montinhos, mais campas polonesas. Nós acendemos uma vela e registramos as coordenadas de mais um cemitério. Infelizmente, parece que, nas redondezas, há mais locais como este.

Fonte: Dariussz Cychol

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