terça-feira, 30 de junho de 2015

BRASIL: CONTER O PODER PUNITIVO, ALTERNATIVA AO ENCARCERAMENTO EM MASSA


Não é mais possível pensar o direito penal de forma desassociada de seus resultados. Conforme aponta Raúl Zaffaroni, ministro aposentado da Suprema Corte Argentina, cabe aos juristas – especialmente àqueles envolvidos com a área criminal – o papel de conter o sistema punitivo: o direito penal deve ser forjado como uma forma de resistência, vinda desde o sistema jurídico constitucional, contra os impulsos autoritários de vingança instrumentalizados pelo poder punitivo. 

Nesse sentido, é preciso reconhecer que o Brasil vive um processo de encarceramento em massa, com resultados altamente danosos para nossa sociedade. Ele se manifesta, entre outras formas, a partir de mecanismos de reprodução de opressões e tratamento desigual oferecido pelo sistema de justiça criminal aos diferentes grupos e parcelas da população. As ferramentas de seletividade penal consideram especialmente clivagens de renda, classe social e cor, conforme bem apontado no Mapa do Encarceramento – Os Jovens do Brasil.

O encarceramento em massa brasileiro e seus efeitos no sistema prisional aparecem de forma nítida no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o mais amplo diagnóstico do sistema prisional já feito, divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional. O relatório demonstra que o Brasil, que ocupa o quarto lugar no trágico ranking dos países com maior população prisional, segue ampliando sua taxa de encarceramento a um ritmo de 7% ao ano (o segundo maior ritmo de encarceramento do mundo) – enquanto EUA, China e Rússia, os três países com maior número de pessoas presas, passam por processo de revisão de sua política penal e estão reduzindo sua população prisional.

O Levantamento indica ainda o baixíssimo acesso a direitos básicos no sistema prisional, como educação e saúde. Somente 11% dos presos têm acesso a educação e apenas 16% têm acesso a trabalho, o que parece ser consequência da óbvia incapacidade da administração prisional dos Estados em prover serviços adequados para um público que cresce exponencialmente.

Os presos são negros (67%), jovens (56%) e pouco alfabetizados (80% estudou no máximo até o ensino fundamental). Chama a atenção também o elevado número de presos sem condenação, que aguardam detidos o julgamento de seu processo: são mais de 250 mil pessoas privadas de liberdade nessa situação, em unidades superlotadas (quase dois presos para cada vaga disponível) e sem destinação exclusiva (89% dos estabelecimentos para presos provisórios abrigam também presos já condenados). A esse respeito, conforme tenho defendido, não há presos provisórios, cautelares ou preventivos – há presos inocentes. São presos inocentes que aguardam tempo demais o julgamento de seu processo (60% estão presos há mais de 90 dias) em celas superlotadas, sem acesso a direitos básicos e cumprindo pena antecipadamente.

Vivemos um cenário trágico, assistido de camarote pela comunidade jurídica que, no mais das vezes, limita-se a discutir aspectos teóricos da “ciência” do direito, complemente afastados da dura realidade que resulta em mais de 600 mil presos no país e dos mecanismos de política criminal que os oprime.

Transformar esse quadro exige, em primeiro lugar, um giro essencial na gramática que envolve o direito penal e a política de segurança pública. É preciso reconhecer que o aprisionamento de enorme contingente de pessoas não representa o sucesso da política de segurança pública – pelo contrário, agrava a situação da violência, profissionalizando no crime aqueles que, suspostamente, se pretende “recuperar”. Alguns movimentos já podem ser observados nesse sentido, a exemplo do Acordo de Cooperação nº 06/2015, firmado entre Ministério da Justiça e Conselho Nacional de Justiça, tendo por objeto a conjugação de esforços voltados à “ampliação da aplicação de alternativas penais, com enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade, contribuindo para o enfrentamento ao processo de encarceramento em massa”.

Diversas estratégias, de ordem jurídica e de política criminal, podem ser adotadas para incorporar esse giro na gramática e convertê-lo em práticas efetivas de enfrentamento ao encarceramento galopante. Menciono algumas, sem pretensão de esgotar as soluções que são muitas e diversas, mas partem todas do reconhecimento da premissa central de que é preciso dar um basta no encarceramento.

Em primeiro lugar, precisamos combater o punitivismo – que não tem qualquer preocupação com a preservação de vidas, mas que predomina nos meios de comunicação clamando por “vingança” ou “justiça”, especialmente contra aqueles que elegemos como “bandidos” ou “delinquentes”: os jovens, negros e pobres das periferias e subúrbios do país. Enfrentar a cultura do encarceramento pode se dar pelo incentivo a produções artísticas e realização de campanhas de conscientização sobre os malefícios para a sociedade de uma política criminal pautada na prisão, trazendo à luz a irracionalidade desse modelo e o ciclo vicioso da violência que envolve crime, cárcere e reincidência. O documentário Sem Pena é ótimo exemplo da forma como a comunicação e a arte podem contribuir para denunciar as mazelas do sistema penal e da política de encarceramento, devendo ser incentivadas iniciativas na mesma direção.

Também é necessário ampliar o conhecimento no campo, com o desenvolvimento de pesquisas que venham a se somar às poucas já existentes na área. A pesquisa “A Aplicação de Penas e Medidas Alternativas” (acesse o Sumário Executivo e o Relatório Completo), realizada pelo IPEA a partir de parceria com o Ministério da Justiça, trouxe elementos importantes para o diagnóstico das práticas alternativas à prisão no país. Contudo, ainda faltam pesquisas que abordem, com maior profundidade, o custo social do encarceramento, sobretudo quanto à relação entre experiência do cárcere, marginalização e reincidência criminal.

É necessário, ainda nesse tema, repensar a atuação da polícia, a exemplo da existência de metas nas corporações que consideram o número de prisões como resultados de sucesso da atuação ou até mesmo como critério de remuneração. Essa mudança passa, especialmente, pela revisão da guerra às drogas, que já representa 27% dos crimes pelos quais são acusadas ou condenadas as pessoas privadas de liberdade no país. O encarceramento de centenas de milhares de pequenos comerciantes de drogas só favorece a perpetuação do tráfico e do crime organizado, ampliando os riscos da “profissão” e, consequentemente, os valores envolvidos no recrutamento. Nesse contexto, é praticamente impossível aos serviços e projetos de inclusão e prevenção social à violência competir com os “postos de trabalho” fartamente remunerados ofertados pelo tráfico de drogas, cada dia mais atraentes ao olhar de jovens negros e pobres, com poucas perspectivas de acesso ao consumo e ao prestígio social pelos caminhos do mercado formal de trabalho.

Alterações no direito penal e processual penal também são essenciais para retirar o papel central desempenhado pela prisão nas respostas punitivas previstas em nossa legislação. Nesse sentido, é desejável ampliar o escopo das alternativas penais e impedir a utilização da prisão, por exemplo, para crimes cometidos sem violência, que são responsáveis hoje pelo encarceramento da maior parcela dos presos do país.

Não basta, contudo, ampliar o escopo das alternativas à prisão sem que existam serviços estruturados para lhes dar efetivação. É preciso ampliar a rede de aparelhos públicos voltados à fiscalização e acompanhamento dos cumpridores de alternativas penais à prisão, que envolvem diferentes medidas, como penas restritivas de direitos, transação penal, suspensão condicional do processo, medidas protetivas de urgências, medidas cautelares diversas da prisão, conciliação, mediação e técnicas de justiça restaurativa. 

Os serviços devem se organizar no âmbito do Poder Executivo, compostos por equipes multidisciplinares formadas nos saberes psicossociais, tendo como foco das medidas o incentivo à participação da comunidade e da vítima na resolução dos conflitos, a responsabilização da pessoa submetida à medida e manutenção de seu vínculo com a comunidade, com garantia de seus direitos individuais e sociais e, ainda, a restauração das relações sociais. Por isso é necessário instituir, mediante Lei, do Sistema Nacional de Alternativas Penais, que positive os princípios relacionados às alternativas penais e as atribuições específicas de cada órgão público na prestação dos serviços e na gestão da política.

São reflexões que deixo, entendendo-as essenciais para se repensar a política criminal no país e promover as transformações necessárias para recuperar a vocação original do Direito penal: conter o poder punitivo.
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Victor Martins Pimenta, graduado em Direito pela USP e em Ciência Política pela UnB, é mestrando em Direitos Humanos e Cidadania na Universidade de Brasília (UnB). É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e Coordenador-Geral do Programa de Fomento às Penas e Medidas Alternativas do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.


Fonte: Carta Maior

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