quinta-feira, 20 de agosto de 2015

BRASIL: POR QUE NÃO MATARAM TODOS EM 1964?



E pensar que aquela senhora deve ter acordado cedo, feito um café delicioso, como só algumas senhoras de certa idade sabem fazer, e depois do café deve ter descido do prédio com o seu cachorro, que deve ter um nome engraçado, um nome carinhoso, e aquele cachorro deve achar que ela é a melhor pessoa do mundo, e, de fato, o cachorro tem que achar isso mesmo, e ela deve ter passeado uns 40 minutos com o seu cachorro, dado bom dia para aquelas pessoas que ela sempre encontra nesta caminhada matinal, e parado para comprar um pão doce que só tem naquela padaria.

E parado para conversar com o jornaleiro, e contado para o jornaleiro que iria participar da manifestação contra o governo, e contado também que iria fazer um cartaz, que ainda tinha energia para lutar pelo Brasil, que iria passar na papelaria, e se ele sabia quanto custava uma cartolina, coisa que o jornaleiro não saberia, e a senhora iria mesmo assim na papelaria, e sairia de lá com aquela cartolina enrolada, e seria uma cena até engraçada, aquela senhora com uma cartolina embaixo de um braço e levando o cachorro e o pão doce com outra mão, e o porteiro perguntando se ela precisaria de ajuda, ela dizendo que não, que estava tudo bem, e lembrando que ele tinha ficado de passar no apartamento pra olhar aquele vazamento, ele, o porteiro, o Zé, dizendo que segunda-feira sem falta, ela respondendo, brincando, “olha lá”, o Zé rindo, ela rindo, o cachorro latindo, o Zé abrindo a porta do elevador de serviço pra ela, apertando o andar dela, antes da porta fechar ela perguntando se ele iria no protesto, ele dizendo que vai ser bem no horário do jogo do Corinthians.

A porta fecha e o Zé não ouvindo a reprovação da moradora, e ela chegando no apartamento, colocando a cartolina na mesa da sala, ligando pro filho, o telefone tocando, ninguém atendendo, a saudade da netinha, que ela já não vê há uns 5 meses, ela comendo um pedaço de pão doce, o melhor pão doce de São Paulo, e quando ela come esse pão doce ela lembra do marido, e ele gostava tanto desse pão doce, e eles comiam juntos, e era um ritual, e depois que ele morreu ficou tão triste comer esse pão doce, e ela sempre sente um frio no peito quando lembra do marido, sente vontade de chorar, pega a cartolina para se distrair e vira a chave do pensamento, ou não vira, matutando o que vai escrever ali.

Tenta ligar para o filho outra vez, o filho é bom pra essas coisas, sempre tem boas ideias, todo mundo diz que é um gênio, mas ele não é bom de atender telefone, não atende de novo, ela vai ter que escrever da cabeça dela, e ela pensando no que vai escrever, ela pegando o canetão e batendo na mesa, a ideia que não vem, o marido morto, o pão doce, o Lula, a Dilma, o Zé Dirceu, o pai militar, o ano em que ainda mocinha, novinha de tudo, conheceu o marido, o primeiro cinema, as mãos dadas, o beijo roubado, o pai militar, orgulhoso de uniforme cintilante, e como ela foi feliz naquele ano, o pai tinha lá suas preocupações, chegava tarde em casa, cansado do trabalho, exausto, morto, mortos todos, e ela pensando que nunca soube exatamente o que o pai fazia no exército, e ela com quase 20 anos já planejava seu casamento, casaria depois de um ano, mas já tinha feito amor com seu futuro marido, e tinha sido bom, se o pai soubesse mataria todos, mataria os dois, seu pai saberia como matar os dois, disso ela tem certeza

Mas aquele tinha sido um ano bom, ela era novinha, estava apaixonada, e tudo parecia nos eixos, e ela pensando em escolher aquele ano para viver pra sempre, não sair do colo quente de 1964, e foi então que ela escreveu, com o português que ela conhece: “porquê não mataram todos em 1964”.

(…)

E ao erguer o cartaz na avenida Paulista, com aquela convicção de quem escreveu “porquê”, a senhora que faz um café delicioso, e que passeia com o cachorro, e que brinca com o porteiro e que come pão doce lembrando do marido, matou todos nós. Um por um, o País inteiro, gente que estava lá, que assistiu de casa ou só viu a foto na internet. Em uma chacina semiótica, matou todos nós, os filhos de 64, os netos, os enteados e os próprios viventes daquele ano, todos mortos, zumbis, terra arrasada, fantasmas de lençóis encardidos gritando buuuuuu.

Nos assustamos todos com o anúncio da nossa morte. Nós, que já morremos faz tanto tempo, morremos outra vez.


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